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Tradução da introdução do dossiê de Benoît de l’Estoile (curador da exposição) para a revista Vacarme

Artigo em francês

Vacarme - Política e cultura. trimestral, em papel e online

Introdução

“Reforma agrária” : um lema mítico no Brasil. Atrás do slogan e das imagens poderosas que evoca, não há massas anônimas nem heróis, mas homens e mulheres com origens variadas. Como um processo que combina a ocupação ilegal de grandes plantações de cana de açúcar no Nordeste e a redistribuição de terras pelo Estado é experimentado por seus atores? Uma investigação e uma exposição sobre um mundo em mudança.

Em 27 de outubro de 2002, Lula (Luiz Inácio Lula da Silva) foi eleito presidente da República do Brasil com mais de 61% dos votos. Os desafios enfrentados pelo novo presidente eram enormes, e os constrangimentos econômicos e políticos sobre ele também consideráveis; mas sua eleição é, em si mesma, uma pequena revolução. Pela primeira vez na história do Brasil, um homem do povo governa o país. Lula nasceu em uma família de camponeses pobres no estado de Pernambuco. Como milhares de outros nordestinos, ele fez quando criança a longa viagem de caminhão para o estado de São Paulo, onde toda a família vivia em um quarto. Aprendeu a ler e escrever aos dez anos de idade. Aos doze anos, começou a trabalhar como entregador, depois de ter sido engraxate, e em seguida, formou-se como torneiro mecânico. Ele se tornou metalúrgico, trabalhou no turno noturno e perdeu um dedo em um acidente de trabalho, pois seu colega de turno adormeceu. Sua primeira esposa morreu no parto após receber tratamento médico deficiente. Foi então que ele se envolveu no sindicalismo. No final dos anos 70, ele organizou as grandes greves de metalúrgicos na região industrial de São Paulo, foi preso pelos militares então no poder, e em 1980 foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Com tal trajetória, Lula encarna, tanto para seus apoiadores quanto para seus adversários, o “povo brasileiro”. Quase todas as pessoas de origem popular que encontrei nos dias seguintes à sua eleição, no Rio de Janeiro ou no Nordeste, consideram Lula como “um de nós”. Isto era expressado em frases como “ele vivia numa casa que nem a minha”; ”ele era um trabalhador que nem eu”; “ele sabe o que é ter fome”; “ele era pobre”; “ele nos chama de ‘companheiros’”. Na noite de sua eleição, Lula falou de sua mãe, que morreu analfabeta, e que o havia ensinado a “andar sempre de cabeça erguida”. “De cabeça erguida” é também o modo como os camponeses do Nordeste querem ser fotografados. Quando lhes é proposto um “retrato”, eles se erguem para posar em frente à câmera. Na região das grandes plantações de cana de açúcar de Pernambuco, marcada pelo legado da escravidão e da dominação pessoal, a reivindicação da dignidade não se dá à toa. “A gente passou a ser gente”, ou seja, “seres humanos”, nos disse um beneficiário da redistribuição de terras para explicar o que havia mudado em sua vida.

As fotografias aqui publicadas, e os trechos de entrevista que as acompanham, foram realizadas numa pesquisa de campo na Zona da Mata de Pernambuco, no sul do Recife [1]. Há alguns anos, nesta região, um poderoso movimento de ocupação de terras, associado a uma política governamental de “reforma agrária” [2], tem dado a vários indivíduos e famílias a possibilidade de adquirir uma terra e uma casa [3]. Este mundo está em constante movimento, daí a necessidade de datar fotografias e entrevistas.

Neste contexto, o que está em jogo na fotografia?
Para os movimentos sociais e seus militantes, é um testemunho da luta e, em diferentes graus, um meio de dar eco às suas demandas. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) tornou-se um mestre da encenação, tanto atacando símbolos que lhe asseguravam uma forte cobertura da mídia, por exemplo, invadindo a fazenda do presidente da República Fernando Henrique Cardoso, como também lançando mão do que ele chama de “mística”, ou seja, um conjunto de formas de ritualização da “luta pela terra”, que combina legado revolucionário e messianismo religioso [4]: canções, bandeiras, desfiles, profissões de fé, ferramentas agrícolas levantadas. A natureza deliberadamente espetacular das ações do movimento contribuiu muito para atrair a atenção da mídia. O fotógrafo Sebastião Salgado colocou seu talento e sua fama a serviço da causa (e vice-versa): seu livro Terra comemora, numa estética heróica, a luta dos sem-terra anônimos, a redenção que vem do sofrimento e da luta. Essas imagens foram difundidas globalmente. Os sindicatos de trabalhadores rurais de Pernambuco, com base municipal e estadual, não têm o mesmo interesse que o MST em anhar visibilidade nacional e internacional, mas estão em concorrência com ele. Historicamente, eles encontraram aliados fiéis entre antropólogos do Rio de Janeiro, que eram próximos à esquerda intelectual, especialmente durante as greves sob o regime militar; anos mais tarde, eles receberam os pesquisadores franceses que os acompanhavam como “amigos de amigos”. Os militantes desses movimentos nos encorajaram, portanto, a fotografar a “luta” e a dar testemunho do que víamos. Os retratos, individuais ou familiares, têm uma outra dimensão. Eles foram  realizados após uma conversa, muitas vezes ao final de uma longa entrevista, gravada ou não, onde a pessoa conta a história de sua vida. Ser fotografado não é um ato trivial; significa dar algo de si mesmo. Várias vezes, aqueles que fotografávamos nos diziam com um sorriso: “Eu vou viajar, eu vou para a França !”. Além do humor, a foto representa assim, no sentido mais forte, a pessoa retratada, ou seja, permite que ela esteja presente em um lugar distante onde ela não teria chance de ir pessoalmente. Ao contrário de uma reportagem fotográfica, no curso de uma pesquisa etnográfica, a produção de imagens não é um fim em si e não se pode fotografar o tempo todo, ou em qualquer circunstância. Para nós, a câmera é ao mesmo tempo uma ferramenta de trabalho (embora o seja menos que o gravador ou o caderno de campo), um auxílio para a memória, uma “caixa de lembranças”, um peso na bolsa e uma forma de “devolver” aos entrevistados um pouco do que eles nos dão. A fotografia não é, portanto, nem um documento simples, nem um simples “documento”. Participa de uma relação de troca com os entrevistados, pois pode ser um “presente”: o primeiro presente da própria imagem ao entrevistador, depois a lembrança oferecida em agradecimento. Algumas pessoas insistiram para que eu levasse uma de suas fotografias de família em troca de minhas revelações impressas. Ela também inscreve a relação num longo prazo: durante minha última estadia [em 2002], convidados a compartilhar uma refeição na nova casa de uma família que havia recebido um terreno, olhamos juntos as fotos tiradas cinco anos antes nos acampamentos, evocando a memória dos falecidos e das crianças que haviam crescido.


Benoît de L’Estoile, novembro de 2002.

[1] A fase coletiva da pesquisa, realizada conjuntamente por professores e alunos do Departamento de Antropologia do Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Departamento de Ciências Sociais da École normale supérieure (Paris), ocorreu nos municípios de Rio Formoso, Sirinhaém e Tamandaré, em setembro de 1997, e depois no verão de 1999. Desde então, tem prosseguido.
[2] Esta expressão é utilizada de diversas maneiras pelos próprios atores. Desde as Ligas Camponesas dos anos 50, a expropriação dos latifúndios tem sido uma demanda dos movimentos e partidos de esquerda. Hoje, os sindicatos rurais e o MST denunciam como insuficientes as medidas tomadas pelo governo, destinadas a assentar famílias em terras compradas de seus proprietários, e apelam para uma “verdadeira reforma agrária”.
[3] Segundo o INCRA, entre 1995 e 1999, 372.624 famílias foram assentadas no Brasil como parte de projetos de reforma agrária, em uma superfície total de 17,1 milhões de hectares, equivalente a um terço do território da França metropolitana. O MST contesta a realidade desses números.
[4] O MST nasceu de uma aliança entre a ala progressista da Igreja católica, marcada pela teologia da libertação e “comunidades eclesiais de base”, e militantes marxistas, ligados à ala radical do Partido dos Trabalhadores.

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Dossiê completo

Dossiê completo (em francês) [pdf]

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